quarta-feira, 22 de junho de 2011

O CACHORRO MORTO


Enquanto guiava em direção ao Canil Público de Brasília percebi que algo me incomodava. Ajeitei-me no banco do carro, mas não consegui afastar o pensamento de que o que era faz bem pouco tempo improvável estava prestes a acontecer.
Uns minutos mais tarde a idéia desajuizada das minhas filhas de adotar um desses cãezinhos vagabundos e vagamundos acabaria se tornando realidade. Não que eu não gostasse de cachorros. Na minha infância fui um desses meninos que trazem cães esfomeados para casa, embora, no meu caso, eu tivesse a certeza absoluta de que minha mãe jamais iria ceder aos meus apelos.
Cachorro era o que não faltava lá em casa. A salsichinha Tatá já estava, na época, para completar treze anos e sabia que não restava muito tempo para que a cena dela partindo em direção ao Céu dos Cachorros se tornasse uma inegociável realidade (nos meus pensamentos, não sei bem o porquê, eu a via se desvanecendo na vastidão do infinito sem nunca parar de abanar o rabinho). Ainda tínhamos a Duda, uma gorducha beagle de meia-idade.
Era uma sexta-feira e chegamos à recepção do Canil Público faltando uns quinze minutos para o fim do expediente. O funcionário que nos atendeu informou que não havia mais tempo para visitas naquele dia e pediu que voltássemos na segunda. As palavras do apressado homem – desoladoras para minhas filhas – trouxeram para minha mulher e eu um súbito alívio, afinal teríamos mais um final de semana para ajustar o pensamento. Mas o meu cérebro reagiu à conformação e, já que estávamos ali, pedi a ele que me deixasse dar uma rápida olhadinha na cachorrada.
O Canil Público é um limpo e organizado galpão com uns dezoito ou vinte boxes dispostos dos dois lados de um largo corredor. Cada um desses boxes aloja cinco ou seis cães, a exceção dos que são destinados aos animais claramente doentes – com cinomose ou leishmaniose, por exemplo –, que ficam confinados em solitário. No primeiro boxe da esquerda, junto ao portão de acesso, ficam os cães destinados a adoção. Longe dos olhos dos poucos visitantes fica a câmara de gás, onde os animais são sacrificados normalmente no quarto dia após chegarem ao corredor da morte. Isso se não tiverem a sorte grande de serem encontrados pelo dono descuidado ou, também pouco provável, de ali encontrarem um dono.
Em cada boxe existe uma prancheta onde são colocadas as fichas dos hóspedes provisórios. Em cada uma delas, vagas informações: cor, idade, nome, se é agressivo, se está doente... Uns foram deixados por seus outrora protetores e por isso têm nome, como era o caso da cachorrinha amarela que foi entregue para morrer e que a minha estupefação me impediu de ler em sua ficha o antropônimo pelo qual foi chamada nos últimos dezoito anos.
Em muitas fichas o espaço do nome aparece em branco: são os cachorros que foram pegos na rua pelos homens da carrocinha. Um “x” no quadrinho que precede a palavra “agressivo” e o pobre animal estará condenado à morte, pois essa simples observação, baseada na interpretação do seu captor ou na justificativa que o antigo dono usou para dele se livrar, praticamente lhe tira a chance de passar ao boxe dos cães destinados a adoção.
Um canil como aquele é um lugar de muitas histórias, histórias que quase nunca estão contadas nas resumidas fichas. Histórias como a do cachorrinho, já nos estertores, do qual nada mais se sabia além do infortúnio de ter sido atropelado. Ou histórias que são mais histórias de donos, como a dos três cachorros – um deles um dogue alemão enorme – que foram para lá a pedido de um médico em socorro de sua paciente, idosa e com câncer, que certamente teria abreviada a sua já condenada existência se insistisse em continuar tratando sozinha daqueles animais.
Quando já nos preparávamos para ir embora, eis que adentra o recinto a chefe do Canil Público, uma gaúcha de Uruguaiana que consegue manter a dignidade num dos, ao menos para mim, piores lugares do mundo para se trabalhar. Uma mulher que se dispôs a travar todos os dias batalhas perdidas com donos de cães que pelos mais insignificantes motivos se furtam da responsabilidade que em outros tempos assumiram. Uma das raras pessoas que têm a compaixão estampada na testa e que me fez acreditar um pouco mais na humanidade e até mesmo pensar que – a comparação era inevitável – não seria de todo impossível encontrar um mísero resquício de piedade no infeliz que tinha a tarefa de fechar as portas das câmaras de gás de Auschwitz-Birkenau.
E foi essa mesma mulher que nos disse que todo o tempo do mundo estava disponível para aqueles que querem adotar um cão. Pouco passava das cinco da tarde e fomos para casa com o nosso cachorro. Ou melhor, cachorra: Bolinha – o nome foi escolhido em uníssono ali, na hora – é uma cadelinha rechonchuda de uns cinco anos que foi abandonada na noite anterior, amarrada numa árvore na frente do Canil.  A cabeça de morcego, tão pequena em relação ao corpo, o rabo cortado no toco e o pelo extremamente áspero, manchado como se uma lata de graxa lhe tivesse sujado as espáduas, certamente a habilitariam ao título de cachorro mais feio do mundo, embora seja a sua incontestável feiúra, paradoxalmente, a razão pela qual encontramos nela alguma beleza.
Essa não foi a única vez que voltei ao Canil Público. Durante a primeira visita me detive olhando as fichas diante de um boxe mais, por assim dizer, populoso. Rex, amarelo; outro Rex, branco; Totó, marrom escuro; sem nome, preto; Baleia, branca; mais um sem nome, amarelo; Rabito, branco e preto... Rabito? Como alguém põe o nome num cachorro de Rabito? E meus olhos vasculharam o boxe a procura desse tal cachorro branco e preto de nome estranho. E lá estava ele, de pé, com seus pés brancos voltados para fora e um enorme abscesso que lhe tomava boa parte do lado direito do corpo. Uma dantesca figura quase sem pelos. Um cachorro não muito grande já entrando na velhice, uns oito anos talvez, um saco de ossos que buscava forças sabe-se lá aonde para não cair. Um legítimo cachorro do além, só esperando para se entregar de vez a confirmação oficial da sua morte.
Fui para casa e não consegui mais tirar aquela imagem da cabeça. Tentava ler o jornal ou assistir televisão e o que via eram aqueles pezinhos brancos, tortos, machucados. Mas o meu lado racional, o meu pragmatismo de gente que se deu bem na vida dizia que o que havíamos feito com uma boa dose de insensatez já estava passado de bom. Até mesmo a veterinária que tratou da Bolinha havia dito que certamente iríamos para o Céu. Ora, se o lugar no céu já estava garantido, se não nos cabia resolver os problemas do mundo, por que preocupar-me?
Fiquei brigando com minha consciência até o limite do tempo em que se eu voltasse ao Canil ainda poderia encontrar Rabito vivo. Na verdade, talvez eu tenha deixado esse tempo passar da hora um pouquinho. Quem sabe assim eu conseguiria enganar a mim mesmo. Viu, você foi lá e infelizmente o pessoal já o havia mandado o coitado para a câmara de gás! Você bem que tentou, não é culpa sua!
Entro no canil e me dirijo ao último boxe do lado esquerdo. Rabito não estava mais lá. Quase que instantaneamente me senti um homem não muito diferente daqueles que mandaram seus bichos de estimação para o Canil Público. Mesmo na hora de adotar um cachorro somos objetivos e me questionei se não havíamos escolhido quando da primeira visita justamente aquele que mais chances tinha de ser adotado. Aqueles que representavam um exato meio termo entre os encargos assumidos e a necessidade de mostrar a nós mesmos – e até mesmo para os outros – que somos benevolentes. Será possível que inconscientemente a minha natureza humana estivesse buscando senão propriamente cachorros de olhos azuis, cachorros diferentes? Estaria eu movido pelo mesmo impulso de excentricidade que leva uma pessoa a comprar uma jibóia ou um iguana?
Já ia indo embora quando minha visão periférica detectou uma imagem familiar. Fixei os olhos num boxe do lado direito e lá estavam aqueles pés brancos, voltados para fora. O sangue me faltou, fiquei pálido como se tivesse visto assombração (a imagem de Rabito, aliás, não era muito diferente disso).
Seja como for, chegara a hora de assumir uma postura de gente. Incomodou-me a comparação que automaticamente fez a minha mente de que o cachorro que estava dentro do cercado olhava nos olhos o cachorro que estava do lado de fora.
Depois de passar dois meses no veterinário, rebatizado de Coitado (como alguém teve a coragem de colocar um nome desses no pobrezinho!), o nosso cachorro morto pode finalmente, bem vivo, conhecer o seu novo lar. Vida nova, casa nova, agora respondendo por Preto – ganhou um terceiro nome a pedido das minhas filhas –, tornou-se um cão extraordinário (embora nunca tenha deixado de lado o hábito ordinário de rasgar sacos de lixo...).
Bem, vou para casa. Sei que, como tem se repetido nesses últimos três anos, faça chuva ou faça sol, o danado do Preto vai estar me esperando no portão. E, por incrível que pareça, sempre acompanhado da Tatá, que aos dezesseis anos ainda continua teimando em adiar a viagem para o Céu dos Cachorros.




O autor é advogado em Brasília e preferiu permanecer tão anônimo quanto o seu cão.

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