Eu moro numa chácara, e já tinha muitos cães. Em agosto de 2009 vi um anúncio sobre a adoção de uma égua, na verdade uma potra. Estrela estava com 2 anos na época, e havia sido resgatada de maus tratos um ano antes pela Gy, muito machucada e quase enforcada. Ela era traumatizada, e estava em plena adolescência. E eu não sabia nada sobre cavalos. Mas tinha muita vontade de ter um.
A Gy me entregou a Estrela por acreditar que eu podia dar uma vida melhor a ela, uma vida sem privações e cheia de amor. Mas acho que dar apenas uma vida sem privações e cheia de amor pra um animal é insuficiente. Eu acredito na evolução de todos os seres, inclusive os animais. E evolução é transformação. Acho que podemos ser ajudantes na transformação dos animais que cruzam as nossas vidas, pelo menos é isso o que eu tento ser. Tento docilizar aqueles muito brutalizados, encorajar os medrosos, equilibrar os afoitos, levar confiança aos desconfiados, estimular a resiliência dos traumatizados. E procuro sempre dar espaço e fazer desabrochar a natureza daquele ser, aquele indivíduo único com sua personalidade.
Já no primeiro ano com a Estrela obtive alguns progressos. A égua birrenta que fugia da gente e não deixava colocar o cabresto desapareceu. Ela fica solta na chácara, se eu deixar a porta aberta ela entra em casa. Ela não é aquele tipo de cavalo distante, que fica no piquete. Ela quer andar atrás da gente e xeretar tudo o que a gente está fazendo no quintal. Acho que ela pensa que é um cachorro. Cavalo geralmente não gosta muito de pegação, mas eu não sabia disso no começo, e acabei acostumando ela com carinhos, afagos, beijos no focinho aveludado, encostar minha testa na dela, abraços no pescoço, enfim, muita pegação. Ela adora brincar com as outras éguas (é, depois da Estrela vieram mais 3!), e já não tem mais aquele comportamento dominante de querer mandar em todo mundo. Desde o curso de doma racional, onde eu aprendi a lidar com ela, nunca mais ela deu um coice em ninguém, nem em mim nem nas outras éguas. Consegui tirar o trauma que ela tinha nas orelhas, e hoje quando afago as orelhas ela fecha os olhos relaxada. Limpo os cascos todos os dias, pra ela se acostumar que a gente pega nos pés e não achar ruim quando tem que ser casqueada. Sou eu quem limpa, escova, dá banho. O meu caseiro não consegue nem botar o cabresto nela. Mas ele é bruto e não consegue compreender a delicadeza que é preciso ter pra se conquistar um cavalo.
A Estrela tem sido uma escola pra mim. Por ela eu tenho estudado e desvendado um mundo novo sobre cavalos que eu nem sonhava existir. Comprei livros, DVDs, fiz cursos, visitei treinadores em vários centros equestres, e descobri que mesmo nos mais caros e chiques estábulos os cavalos são infelizes. Ganham ração caríssima, são banhados com xampu importado, usam selas de grife, mas vivem confinados em cubículos de 3×3 metros sem janelas. Nestas horas meu bom senso me faz discordar do que “é bom” para os animais. Aqui a Estrela é livre, dentro das minhas possibilidades. Fica solta na chácara, junto com suas amigas. E ela adora a companhia das outras éguas, especialmente da potrinha, que gosta de brincar de morder. Ela está podendo ter a infância que ela não teve. Tem sua natureza de cavalo respeitada, pode pastar e caminhar o tempo que quiser em companhia das suas amigas. É incrível como a presença de outro cavalo dá segurança pra ela. Mesmo o banho e os exercícios é preciso fazer perto das outras éguas. Eu fico feliz de poder dar esse tempo pra ela crescer e amadurecer, respeitando a sua natureza e as suas necessidades de equino.
O ser humano tem tendência a olhar para o animal sob a sua própria perspectiva. É por isso que eu acho insuficiente dar ração e amor. Acho que o mais importante que estou fazendo pela Estrela é procurar compreendê-la, escutá-la, estar aberta pra o que ela pode me mostrar que quer e que precisa, estar aberta para compreender a linguagem e o mundo dos cavalos, que é tão diferente de tudo o que eu imaginava. Estar aberta a olhar para um cavalo não do ponto de vista de quem está sentado em cima dele e espera que o cavalo faça algo, mas do ponto de vista de quem está no chão, no mesmo patamar, e gostaria de caminhar junto, se tornar parceiro. E pra conseguir isso estou aprendendo que é preciso muita, muita, muita paciência. E perseverança. E todo dia um pouquinho de cada vez.
E daí descubro que não é só a vida da Estrela que está se transformando. A minha também. Esse exercício de sair de cima da nossa superioridade e olhar o mundo pela perspectiva do outro está sendo revelador. A gente descobre, num susto, o quanto da realidade que a gente não conseguia enxergar. A Estrela está me ensinando a ter humildade. A respeitar toda reação, não como agressões a mim, mas simplesmente porque ela tem um ponto de vista diferente do meu. Eu era muito controladora, achava que era preciso ter pulso forte pra vida não sair dos eixos. Com cavalos não há pulso forte. Se for pela força, eles sempre ganham. E estou tentando levar pro resto da minha vida todos os ensinamentos que a Estrela está me proporcionando.
Eu ainda tenho muito a melhorar, mas a Estrela abriu uma porta maravilhosa na minha vida. Por isso só tenho a agradecer. A Deus, em primeiro lugar, pela oportunidade. À Estrela, pelo privilégio deste convívio. E à Gy, por ter me dado este precioso presente.